CIRCULAR, CARLA E MEU TIO




Eu tinha 8 anos quando meu tio Zé foi morar com a gente. Eu tenho lembranças incríveis dessa época. As brincadeiras, as minhas amigas, as visitas dos meus primos... E a importância que meu tio teve para minha infância. Ele foi o último filho dos meus avós maternos e de certo era um jovem do interior, um tanto mimado, mas muito durão. Talvez essa parte do durão seja apenas impressão minha. Certamente, um homem negro de 2 metros de altura não passa uma impressão muito meiga, pois não?! Por morarmos em um lugar um tanto isolado, quando aparecia gente nova no pedaço era sempre uma festa. E ter meu tio morando com a gente melhorou muito minha relação com as pessoas. Às vezes eu tinha medo dele, principalmente quando matava cassaco pra comer. Como se não tivéssemos comida em casa. Mas ele tinha um bom coração. E tenho como provar que dentro de um grande homem há sempre uma cisterna de lágrimas e sensibilidade.

Logo nos seus primeiros dias com a gente, eu estava brincando na varanda e quando vi que meu tio estava vindo, coloquei meus dedos na dobradiça da porta. Ele não me viu e fechou a porta pressionando meus 4 dedos gorduchos de uma vez só. Um grito agudo saiu rasgando da minha garganta. Ele fez uma cara de quem tinha perdido todos os seus bens em um desastre natural. Segurou minhas mãos na altura dos seus olhos enquanto chorava copiosamente. E não demorou para que no chão surgisse uma delicada poça de sangue. "Me perdoe! Me perdoe! Meu Deus! Me perdoe!". Era eu quem sentia a dor, mas parecia que algo o rasgava por dentro. Todas as minhas unhas caíram e enquanto não nasceram outras, ele continuou a me pedir perdão

Tio, hoje que quero admitir que a culpa foi toda minha.

Meu pai tinha uma velha bicicleta Circular. Meu tio decidiu que iria aprender a andar de bicicleta, mesmo não sendo mais nenhuma criança. Todos os dias ele pegava a bike e ia tentar. Muito tempo depois ele conseguiu dar uma longa - quase eterna - volta no campo. Ele parecia tão feliz por aquela conquista que contagiou a todos. Eu também tinha minha bike. Ela tinha uma pintura azul marinho e estava descascando dando espaço ao ferrugem. Eu amava aquela bike, mas nunca tive coragem de tirar as rodas de apoio. Mesmo já tendo 8 anos. Depois que eu vi aquela longa volta quase eterna e inspiradora, pedi: "Tio, me ensina a andar de bicicleta sem rodinha?". Seus olhos brilhavam de orgulho e logo começamos a praticar. Todos os dias, incansavelmente... Continuei sonhando com a minha primeira longa volta quase eterna no campo. Tentava e tentava...  e a cada dia um pedaço dos meus joelhos iam embora. Tadinha da Circular, ela caia mais do que rodava.

"Carla" era uma música do LS Jack. Meu Deus! Ela era viciante e em todas as estações do rádio só tocava ela, o dia todo. Aquilo grudou na minha cabeça. Eu nem sabia quem era Carla. Eu não conhecia nenhuma Carla. Mas ela parecia ser tão especial e forte. Um dia, quando partíamos para mais uma tentativa, comecei a cantar "Carla" bem alto. Meu tio segurava a Circular enquanto eu me ajeitava. Eu pedalava com dificuldade e ao mesmo tempo ele me empurrava e dava passadas cada vez maiores. E eu... continuava cantando. Até que ele deu um impulso e soltou.
- ôh Carlaaa...
- Vaaai!
- eu te ameeeei...
- PEDALA! PEDALA!
- como ja maaaais um outro alguém vai te amaaaaaar...
- PEDALAAAAA!
- antes que o sooool pudesse acordaaar...eu... eu... EU CONSEGUI, TIIIII.


Eu consegui! Eu consegui! E pela primeira vez na vida eu entendi o significado de persistir. Meu tio chorou quando me viu dando uma longa volta quase eterna no campo. No fundo ele sabia que sem ele aquele momento não estaria acontecendo. "Carla" continuou na cabeça como todos os hits do início dos anos 2000. Foi uma canção muito importante que marcou minha infância e talvez tenha ficado um pouco daquela Carla forte e especial em mim. Quem era Carla para o compositor eu não sei, mas sei que para mim ela era a incrível alma que meu tio viu segurando a Circular quando ele soltou.

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